Lidar com criança é um desafio constante e com uma criança autista isso é ainda mais intenso porque ela exige de nós uma adaptação educacional pedagógica, lúdica e intelectual mais ativa. Os comandos precisam ser simples, diretos e firmes.
Não é fácil repetir a mesma coisa 365 vezes por ano, 24 horas por dia, 7 dias na semana, pra ser bem sincera é exaustivo. Todo dia o mesmo assunto, a mesma história, o mesmo filme ou desenho, as mesmas brincadeiras e eles não cansam tão rápido quanto a gente. O “meu autista favorito” tem me ensinado sobre paciência, logo eu, que sou tão “pavio curto” tenho que respirar fundo e desacelerar. Ele também me faz refletir que cada pessoa no universo é única e tem o seu tempo e o seu despertar. Quando vejo sua evolução nas pequenas coisas, seu processo de aprendizagem, mais consigo compreender que a repetição é apenas uma das formas que ele absorve melhor o aprendizado. Existem outras formas de aprendizado? Sim. E cada um aprende de um jeito, o importante mesmo é descobrir as conexões, os interesses e muitas vezes adaptá-los para que não se limitem e avancem cada vez mais no conhecimento e aprendizado ao longo da vida.
Ele assiste o mesmo filme 500 vezes sem enjoar e depois vem me contar o que viu de interessante no filme. Já passei 4 horas o ouvindo dizer a mesma coisa sobre dinossauros, tubarões e baleias. É o que ele gosta e eu percebo sua felicidade em compartilhar o que sabe.
Teve um dia que eu cheguei a pensar que não estava fazendo a menor diferença na vida dele e em seu progresso educacional, até que um dia em sala de aula ele virou pra mim e disse: “Paloma, me empresta o apontador, por favor?” Eu me surpreendi e pedi que ele repetisse a frase, mas achando que ele não faria ou que ficaria bravo, pois geralmente era o que acontecia. Ele repetiu tranquilo: “Paloma, me empresta o apontador, por favor?” Eu emprestei sorrindo e quase chorando de tanta alegria. Parece pouco e um tanto bobo, né? Mas acredite, não é. Ele não falava frases inteiras, apenas palavras soltas. Eu comemorei, lógico! Eu disse: Parabéns, eu gostei de ver! Você falou uma frase inteira, né? E ele disse feliz: Sim.
Outro dia nós estávamos na biblioteca e ele pensou que uma colega estava brigando comigo. Ele se levantou e disse: “Ei, você está brigando com a minha amiga Paloma é? Não faça isso! Eu não gosto disso!” Eu achei fantástico. A percepção dele e a interação com as pessoas e o ambiente melhorou e muito. Como não comemorar algo assim?
Eu sentava ao lado dele todos os dias e tentava no meu possível fazer o meu melhor para que ele se desenvolvesse e não ficasse tão dependente de mim. E como eu fazia isso? Com as coisas mais simples do mundo. Pedia para ir pra sala de aula sozinho e ele ia (eu ficava olhando de longe, claro!); quando ele queria brincar com os colegas eu o incentivava a ir até eles e chamá-los pra brincar e ele ia; adaptava as brincadeiras dele para que nem ele e nem os colegas saíssem machucados porque ele é muito forte e ainda não tem noção de sua força; Usava e ainda uso a técnica dos combinados. Veja bem, eu disse combinados e não chantagem, heim! Trabalhar com a criança os combinados é válido porque ela aprende a negociar, a organizar pensamentos e até argumentos, aprende o valor do trabalho e também da recompensa sem negatividade. Na chantagem a criança sempre espera o bônus pelo “bom comportamento” já no combinado os dois decidem juntos o que vai ser melhor, o que pode ou não ser adaptado e adequado aquele momento. A chantagem trabalha o ego e o próprio interesse enquanto que o combinado trabalha o relacionamento, a confiança, a troca e o benefício mútuo sem que ninguém saia no prejuízo.
Ensinar é desafiador, mas o que não nos desafia também não nos transforma. Ver o desenvolvimento do “meu autista favorito” em sua jornada acadêmica, seu progresso social, a sua evolução na forma como percebe as pessoas e o ambiente é simplesmente maravilhoso. E eu comemoro cada passo, cada vitória porque sei o quanto é importante para ele o fazer parte, o pertencer, o “eu também quero, eu também posso”.
Eu já duvidei da minha importância, do meu papel como educadora, mas quando vejo o avanço na aprendizagem não apenas dele como também de outras crianças e adolescentes que ficam ainda que por um breve momento sob a minha responsabilidade e orientação, sei que estou no caminho certo. E nada me faz mais feliz do vê-los superando os seus limites, indo além do que os olhos podem ver.
Você acha que existe criança difícil? Então, lembre-se de quando você era apenas uma criança tentando se expressar, organizar os próprios pensamentos, adaptar as situações do dia a dia e lidar com diversas pessoas e tantas informações ao mesmo tempo. Alguém precisou ter paciência para ensinar o que você sabe hoje. Alguém precisou sair da zona de conforto e separar tempo, energia, paciência, o sim e o não. Ninguém nasce sabendo e até o último dia de nossas vidas vamos aprender e reaprender muita coisa. Você quer mudar o mundo? Comece com a sua própria transformação. Você quer que a próxima geração viva num mundo mais consciente, mais humano e livre de preconceitos? Ensine-os, conscientize-os e seja exemplo. A muitos anos vejo pessoas sendo excluídas, tratadas de forma injusta, e tendo suas deficiências enaltecidas ao invés de suas potencialidades.
“Meu autista favorito” é 3 vezes mais inteligente do que eu. Eu sei que não parece, mas o meu QI já foi avaliado e a psicóloga disse pra minha mãe: “Olha mãe, não tem nada de errado com a sua filha! O QI dela é excepcional.” Eu tinha 7 anos e a professora achava que tinha algo errado por eu não seguir o “padrão da turma”. Se o meu QI é muito bom, imagina um QI 3 vezes mais elevado que o meu? “Minha Branca de Neve (princesa) adolescente” é ávida por conhecimento. O diagnóstico? Paralisia cerebral. Isso a impede de aprender? Não. Ela aprende da maneira dela e diferente dos seus colegas de sala ela demonstra interesse pelo conhecimento, pelo novo, em superar desafios e vencer e quando erra ela olha pra mim e diz: “Vou tentar de novo.” Eles não são meus filhos. São meus alunos, meus amigos, meus educadores porque eu ensino, mas também aprendo com eles. Nossa didática é única, é divertida, mas ainda tem um longo caminho para percorrer e se eu não puder estar presente que outros possam estar e fazer ainda melhor do que eu em favor deles porque quanto mais eles aprendem mais vale a pena ensinar. Quanto mais eles aprendem, quanto mais inclusão temos e fazemos mais perto do ideal da educação nós estaremos.
Quem de fato é o deficiente? A criança ou adolescente que embora possui uma limitação física, neurológica ou intelectual, mas que da sua própria forma se expressa, se comunica, interage, percebe e segue em frente ou a gente que não compreende essa comunicação, essa linguagem diferenciada?
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“Todo mundo é um gênio. Mas, se você julgar um peixe por sua capacidade de subir em uma árvore, ele vai gastar toda a sua vida acreditando que ele é estúpido.”
Albert Einstein