MENINO NÃO BRINCA DE BONECA

Em 2018 eu ficava responsável por auxiliar o Vittor (aluno do 4°ano), um menino do TEA (transtorno do espectro autista) tanto em sala de aula, quanto no recreio ou em outros ambientes (sala de vídeo, quadra, excursões). Certo dia, numa aula de educação física a professora deixou as crianças livres para brincar do que quisessem. Uns escolheram o futebol, outros escolheram seus próprios brinquedos.

Eu estava sentada na arquibancada do pátio observando o Vittor brincar com o jogo dos pezinhos (que pintaram no chão da escola) e de repente ele olhou para as coleguinhas segurando uma boneca e ficou observando por uns 2 minutos quando ele se aproximou de mim, segurou minha mão, apontou para as meninas e disse: Olha!

Eu conhecia bem esse gesto. Quando ele fazia isso era porque ele queria interagir e precisava de ajuda para isso.

Então perguntei: Você quer brincar com elas? E ele disse: Sim.

Me levantei e ele colocou seu braço em volta do meu como era de costume. Me aproximei das meninas e falei pro Vittor pedir pra brincar com elas. E ele disse: Ah, deixa eu brincar com vocês! Me dá isso aqui (a boneca)! Não tá segurando direito.

Eu disse: Vittor, não é assim que se diz. Pergunte assim: Eu posso segurar a boneca? Ele repetiu a frase e as meninas deram a boneca pra ele.

Sabe o que ele fez?

Voltamos para arquibancada e ele segurou a boneca como se estivesse segurando um bebê de verdade, embalou a boneca em seu colo, deu a mamadeira, fez o bebê arrotar e dormir. Sim, ele fez tudo que a gente faz com uma criança pequena. Ele cuidou da boneca como se fosse um bebê de verdade. E ele estava feliz. E eu? Fiquei admirada, é claro!

As meninas chegaram até a mim rindo e disseram: Paloma, o Vittor é doido! Menino não brinca de boneca.

E eu disse: O que tem de tão errado nisso? E elas retrucaram: Boneca é de menina.

Foi quando eu disse que o Vittor não é doido. Ele é inteligente, sensível e “brincar de boneca” não o tornaria menos homem.

Eu disse a elas que os meninos se tornarão homens um dia e consequentemente maridos e pais. Portanto, quando meninos brincam de casinha e boneca com as meninas, eles estão adquirindo responsabilidade, sensibilidade. Eles estão desenvolvendo senso de dever, de cuidado, de proteção. Não tem nada de errado nisso.

Elas entenderam e pararam de rir.

A gente vive numa sociedade complicada, que rotula tudo.

Cor não tem gênero e as brincadeiras também não.

Gênero tem o ser humano (masculino, feminino), os animais (macho, fêmea), os textos (gêneros textuais) e por aí vai.

Assim como nós (meninas) brincamos de casinha e boneca imaginando o futuro, imaginando cuidar da casa, do marido, dos filhos, por que um menino não pode imaginar o mesmo? Por que ele não pode se ver como marido, pai, provedor, cuidador do próprio lar?

As meninas disseram o que muitos dizem e a gente ouve bastante que é: Boneca é de menina.

Mas aí eu te pergunto: E os filhos no futuro serão de quem?

Serão só das mulheres (meninas)? O pai vai simplesmente chegar em casa depois do trabalho e não participar de mais nada? Onde fica a responsabilidade dos pais (que um dia foram meninos)?

Casa e filhos não é algo único e exclusivo da mulher (esposa) é do homem (marido) também. Ele é tão responsável pelo lar e pelos filhos quanto a mulher.

Não é ajuda, bem! É responsabilidade.

A mulher não produz uma criança por si mesma. Ela precisa do homem pra isso e vice-versa (porque nenhum ser humano se multiplica sozinho). Então, por que é só a mulher que é cobrada? Por que ela tem que tomar conta de tudo sozinha? Por que o peso maior fica sobre ela antes, durante e depois da maternidade?

Seus filhos não serão menos homens por brincar de boneca. Muito provavelmente eles serão homens melhores, mais responsáveis e pais de verdade. Serão homens que não vão fugir de compromissos.

Tudo é aprendizado. E quando a educação é orientada, é correta, é ensinada no tempo certo, o que vemos é um ser humano íntegro, respeitoso, sensível, sociável, responsável, e seguro de si.

O Vittor foi devidamente orientado e muito provavelmente tenha segurado um bebê de verdade em seu colo, pois ele sabia exatamente o que estava fazendo apesar de ser uma criança. Como segurar um bebê, dar a mamadeira, fazer a criança arrotar e dormir, ele também sabia como trocar a fralda.

E eu? Sempre o admirei. No tempo que fiquei com ele (o ano letivo) não houve um dia sequer que ele não tenha me surpreendido.

Eu certamente aprendi muito mais do que ensinei e fico feliz e grata por isso. ❤